O futuro dos hospitais passa pelos “hospitais sem pacientes”

Com o avanço da tecnologia, a medicina tem passado por uma profunda transformação. O americano Mercy Virtual Care Center, por exemplo, é um hospital virtual. Ele tem médicos e enfermeiras, mas não tem leitos. Cezar TaurionCezar Taurion •15/04/21 • 06h42

A tecnologia está inundando a medicina com novos tratamentos, novas drogas e novos protocolos. Mas, por outro lado, o modelo de negócios e o paradigma dominante (doença e não saúde) continua sendo o mesmo de cem anos atrás. Claramente existe um descompasso entre as possibilidades que as tecnologias digitais oferecem e a prática, processos e modelos de negócios adotados pelo ecossistema de saúde.

No lado tecnológico, com a aceleração exponencial das tecnologias digitais, nunca houve na história da medicina avanços tão rápidos em tão curto espaço de tempo. A cada dia, nos surpreendemos com inovações que mudam nossa maneira de ver a medicina.

Se recuarmos a uns meros dez anos atrás não imaginaríamos o que temos hoje, com smartphones, wearables, IA, robótica, VR/AR, impressoras 3D e bilhões de usuários em redes sociais provocando transformações radicais nas tecnologias médicas. O ritmo de inovações se acelera continuamente e já é impossível para um profissional de medicina se manter minimamente atualizado.

A pandemia acelerou em muito o processo de mudanças, quebrando resistências como a que existia, por exemplo com relação à telemedicina. Estamos no início de um profundo redesenho do que entendemos como setor de saúde, afetando pacientes, profissionais, hospitais e todos os atores envolvidos no ecossistema.

O grande desafio neste redesenho não é fazer com que a tecnologia substitua a interação pessoal e humana do(a)s médico(a)s e enfermeiro(a)s com os pacientes, mas tornar essa interação mais frequente e empática. É fazer com que as inovações tecnológicas eliminem tarefas robotizáveis, minimizem erros e ineficiências, e tornem a medicina mais humana.

Tecnologia e humanidade não são incompatíveis, mas sim devem atuar em sinergia. A relação dos profissionais de saúde com os pacientes, baseada na confiança mútua, é crucial para qualquer tratamento e, portanto, devemos estar preparados para balancear as cada vez mais frequentes e disruptivas inovações tecnológicas com a nossa humanidade.

Embora predições sejam muito difíceis de se concretizarem, algumas tendências já estão delineando o futuro da medicina. Os pacientes estão cada vez mais empoderados. Com smartphones e wearables, eles têm a internet no bolso. Podem acessar informações do mundo todo com um simples toque ou até mesmo interagindo via voz com um assistente virtual.

As informações estão disponíveis e é claro que as pessoas pesquisarão sobre seus sintomas na internet. O novo papel do médico não é menosprezar essa atitude, mas ajudar a fazer as pesquisas corretas, agindo como curador. A relação do(a)s médico(a)s com seus pacientes muda. Não é mais autoritária e unidirecional, mas colaborativa.

O paciente bem-informado não é ameaça, mas um aliado e colaborador. Cem anos atrás nós só poderíamos saber se tínhamos diabetes indo ao médico e agendando exames de laboratório. Hoje temos monitores de glicose e tiras que permitem que façamos isso em casa.

O paciente bem-informado não é ameaça, mas um aliado e colaborador

Não significa que o endocrinologista vai desaparecer, mas, pelo contrário, ele poderá ter acesso a informações muito mais frequentes que os esporádicos exames solicitados anteriormente e dedicar a maior parte do tempo da consulta a entender melhor quem é a pessoa, o ser humano, e as prováveis causas que levaram ao diabetes e dessa forma agir de forma mais preditiva, assertiva e contínua.

Isso nos leva a uma segunda tendência: o redesenho do ensino da medicina. O ensino atual ainda está concentrado no paradigma da doença e não na saúde (médico é treinado para curar doença e não manter a saúde), com pouca ênfase no conhecimento e aplicação das tecnologias digitais que surgem a cada dia. Os médicos, em sua maioria ainda são formados como médicos analógicos, não saem fluentes digitais.

Vamos pensar no desafio. Uma formação médica leva seis anos e mais dois de especialização. São oito anos para se formar. Em oito anos, por exemplo, em 2029, com a evolução exponencial da tecnologia, podemos imaginar o cenário da aplicação dessas tecnologias? Já estaremos imprimindo comumente órgãos humanos por impressoras 3D?

Os assistentes virtuais e os wearables monitorarão os pacientes desde o acordar até o adormecer, sinalizando quaisquer sinais de anomalia como estresse, variação do batimento cardíaco, pressão arterial e nível de hemoglobina no sangue. Sintomas de tosse e mesmo aqueles sinais na pele são fotografados pelo próprio paciente e enviado para o dermatologista. Microcontrações na face podem indicar um sinal de problema cardiovascular e o cardiologista é informado em tempo real.

Tecnologias como AR/VR fazem parte do dia a dia e os assistentes virtuais assessoram o médico como um colega de trabalho, o ajudando nos diagnósticos, sugerindo linhas de raciocínio que ele não pensaria sozinho. Impossível? Onde estávamos oitos anos antes? Aliás, se adicionarmos o fato que a evolução tecnológica é exponencial, seria mais adequado perguntar não onde estávamos oito anos antes, mas quinze ou vinte anos antes. É como hoje estivéssemos no ano 2000. Lembram de como era nosso dia a dia?

Isso nos leva a considerar que o sistema atual de ensino da medicina deve ser repensado. Tem que ser mais dinâmico e compatível com a evolução das tecnologias digitais e seu potencial de aplicabilidades. Por exemplo, os cirurgiões muitas vezes carecem de oportunidades adequadas para praticar de forma consistente as habilidades que estão aprendendo, especialmente às relacionadas com novas tecnologias médicas.

Ao treinar em um novo equipamento, antes das restrições da pandemia, os cirurgiões precisavam viajar para um hospital ou escritório para um treinamento de um a dois dias com a empresa fabricante dos dispositivos médicos. Este treinamento, efetuado uma vez apenas, não é suficiente para que os cirurgiões continuem reforçando suas habilidades. Com a pandemia, o treinamento foi reduzido mais ainda.

Essas habilidades nem sempre são colocadas em prática de imediato, podendo chegar a alguns meses desde o momento em que os cirurgiões treinam, até quando realizam o que aprenderam em um paciente, obrigando-os a atualizar seus conhecimentos “na hora” na sala de cirurgia. Essas deficiências no treinamento aumentam os níveis de risco, com graves consequências para os pacientes.

Um estudo recente da Universidade de Michigan descobriu que 30% dos cirurgiões não podiam operar de forma independente após a residência

Um estudo recente da Universidade de Michigan descobriu que 30% dos cirurgiões não podiam operar de forma independente após a residência. E cirurgiões bariátricos menos qualificados tiveram taxas de mortalidade cinco vezes maiores do que seus colegas altamente qualificados, de acordo com uma outra pesquisa, esta publicada no New England Journal of Medicine. No total, estima-se que 7 milhões de pacientes em todo o mundo experimentam complicações cirúrgicas a cada ano.

Daí a importância de estudos recentes, como o “Research: How Virtual Reality Can Help Train Surgeons”, publicado pela HBR, que mostrou como o uso de tecnologias como VR/AR podem melhorar em muito o processo de aprendizado e reciclagem na formação médica.

Essas mudanças afetarão todo o ecossistema de saúde e, sem sombra de dúvidas, afetarão radicalmente os hospitais. Os pacientes podem hoje monitorar seus sinais vitais onde quer que estejam, graças aos smartphones e wearables e compartilhar os seus dados com seus médicos remotamente.

Mas isso não torna os hospitais totalmente obsoletos. Em vez disso, eles se tornarão centros de saúde para pacientes de cuidados agudos e para pacientes que precisam de procedimentos cirúrgicos ou grandes máquinas de radiologia.

Visualizar uma medicina no futuro é um exercício de imaginação, mas podemos identificar sinais dispersos, que, se conectados, apontam para uma direção. Com certeza, a maior digitalização da medicina; a telemedicina: o uso massivo da IA (o novo estetoscópio); a personalização; o foco na saúde e não na doença; e o monitoramento contínuo e não visitas pontuais ao médico, parecem ser sinais claros, que se combinados, podem nos mostrar uma visão de futuro consistente.

Podemos chegar a um nível de destruição criativa que nos permita imaginar uma medicina sem hospital? Pelo menos em um horizonte previsível salas de emergência, cirurgia e UTI continuarão existindo, mas quanto às outras atividades hospitalares? Bem, já existe experiência nesse sentido.

O Mercy Virtual Care Center nos EUA é um hospital virtual. Tem médicos e enfermeiras, mas não tem leitos. Os pacientes não ficam internados e o uso massivo de IA ajuda a monitorar cada paciente em suas casas e alertar os médicos quanto às variações de seus sinais vitais.

No Mercy Virtual Care Center, os pacientes não ficam internados e o uso massivo de IA ajuda a monitorar cada paciente em suas casas

Vale a pena dar uma olhada no artigo “A hospital without patients” e talvez tenhamos um vislumbre de um dos cenários de possíveis hospitais do futuro. Na prática, um modelo intermediário, chamado Hospital at Home (HaH), com parte do atendimento hospitalar efetuado em casa, já está bem posicionado em países como Reino Unido, Israel, Canadá, EUA e Austrália e está sendo impulsionado em outros países pela pandemia do Covid-19.

Um estudo feito na Austrália mostrou que cerca de 60% dos pacientes com trombose venosa profunda são tratados em casa. Existem barreiras culturais, como o artigo “Hospital at Home” Programs Improve Outcomes, Lower Costs But Face Resistance from Providers and Payers” mostra, mas a pandemia tem derrubado estas resistências. Provavelmente no “novo normal”, pós-Covid, o processo de transformação da medicina seja acelerado.

As mudanças serão não apenas no uso de tecnologias, mas nos projetos arquitetônicos de seus prédios e nos modelos de negócio. Técnicas cada vez menos invasivas demandarão ciclos de internações mais rápidos e os próprios ambientes demandarão um ambiente mais voltado ao paciente.

Hoje, a maior parte dos hospitais mantém quartos e CTIs similares aos que foram desenhados décadas atrás, em mundo analógico. Os hospitais do futuro terão tecnologia digital não apenas nas salas cirúrgicas, com robôs, mas embutida em todos os seus processos. Smartphones e assistentes virtuais não serão equipamentos proibidos, mas farão parte do processo de tratamento.

Os quartos similares a celas de presídios, corredores intimidadores, médicos e assistentes com formulários e planilhas em papel, batendo cabeça com falta de informações, troca de turnos gerando confusão, barulhos que geram ansiedade e inquietação, enfermeiros entrando de madrugada para medir sinais, tudo isso que hoje é comum, pode e deverá ser substituído por tecnologias digitais para dar mais conforto e assistência ao paciente.

O hospital do século 21, com as tecnologias do século 21, não poderá conviver com uma arquitetura e processos do século 20. Um artigo muito interessante, “The Future Of Hospital Design – Inside The Point Of Care”, visualiza experiências e apresenta propostas de como integrar o físico (prédio do hospital) com as tecnologias digitais, criando novos conceitos do que conhecemos hoje como hospital.

Parece um cenário futurista, que muitos imaginam só acontecerá em décadas. Mas o futuro está logo ali. As práticas médicas, as profissões e o ecossistema de saúde como um todo estão em transformação. As tecnologias digitais farão parte do dia a dia da medicina e provavelmente, no futuro, o símbolo do profissional vestido de jaleco branco com estetoscópio será substituído pelo jaleco com smartphone.

Precisamos debater esse futuro, hoje. Entendemos que o futuro não chega de repente. Ele é construído passo a passo. É fruto de nossas decisões e ações. Precisamos pensar exponencialmente, mas agir de forma incremental. As mudanças não surgem de imediato, mas levam tempo para transformarem e mudarem os hábitos da sociedade.

Quando o Projeto Genoma foi concluído, imaginou-se que a medicina seria totalmente transformada em poucos anos. Entretanto, levamos mais de uma década para implementar uma variante genômica. É essencial eliminar o hype que surgem com tecnologias disruptivas, analisar as tendências e extrapolar o futuro de forma responsável.

Não devemos ficar presos exclusivamente a um ou outro movimento ou filosofia futurista, como o transumanismo, pois as verdadeiras mudanças serão decorrentes da convergência dos diversos conceitos.

Precisamos construir a medicina do futuro. Uma medicina que poderá eliminar muito do trabalho robotizado que vemos hoje e tornar a medicina cada vez mais humana. O hospital reimaginado faz parte desse futuro!EXPERTS • MENTE PROGRAMADA inovaçãomedicinasaúde

Fonte:O futuro dos hospitais passa pelos “hospitais sem pacientes” | NeoFeed