Fabricio Campolina
Healthcare Transformation Officer at Johnson & Johnson Medical Latam
No início de cada ano, tenho o costume de fazer uma reflexão sobre os rumos do mercado de saúde. Revisitando minhas expectativas, percebo que muitas se concretizaram. Uma boa ilustração foi o anúncio do primeiro unicórnio brasileiro na área de saúde após o aporte do Softbank na Healthtech brasileira Gympass, em Junho de 2019.
Este ano, decidi ir além: pensar sobre a evolução do mercado de saúde nesta nova década.
A transformação digital, em especial a Inteligência Artificial com aprendizagem de maquina, será a base para a maioria destas megatendências.
Neste sentido, compartilho minha reflexão sobre quais são estas transformações e como deveriamos nos posicionar para nos mantermos relevantes mediante todas as mudanças que vamos vivenciar.
1. Maior Expectativa de Vida Saudável
Houve grande avanço na expectativa de vida em todo mundo. Entretanto, este progresso se deu pelo maior número de pessoas que chegaram à idade avançada, e não pelo prolongamento real do limite biológico.
De acordo com a lei de mortalidade de Gompertz-Makeham, o risco de morte dobra a cada 8 anos de existência, fazendo com que seja pouco provável passarmos de 100 anos de idade e extremamente raro chegarmos aos 120 anos.
O grande desafio desta próxima década será expandir este limite biológico e chegar em idade avançada com saúde, ou seja, estender a Expectativa de Vida Saudável.
Isto será possível quando olharmos o envelhecimento de forma mais ampla e aberta. Tratar o envelhecimento como “doença”, por exemplo, muda os paradigmas atuais, uma vez que, assim sendo, o envelhecimento – como toda doença – deve ser tratado e controlado. Obras como LifeSpan – Why We Age and Why We Don´t Have To de David Sinclair aprofundam esta visão.
O significante avanço na compreenção de biologia molecular somado à possibilidade de uso de Gêmeos Digitais ou Digital Twins para simular múltiplos cenários de envelhecimento e de novas técnicas como reativação de células tronco, imunoterapia, optogenética, transfusão de plasma, novos princípios ativos e melhoramente epigenético, resultará em tratamentos para retardar e, talvez até, em certa medida, reverter o processo de envelhecimento.
2. Necessidade de Reescrever o DNA de Negócios
Os modelos de remuneração baseados em valor avançarão nesta década por meio de ondas. Inicialmente, haverá apenas compartilhamento dos ganhos. Após, a cada interação, será distribuído mais risco no sistema. Os hospitais, profissionais de saúde, operadoras e indústria irão focar aonde podem ser mais efetivos.
Com esta evolução, os atores precisarão se concentrar no valor que podem criar para o sistema. E, também, em desenvolver modelos sofisticados de gestão de risco para capturar o valor criado.
Em resumo, as empresas que buscarem apenas melhorias incrementais ou que insistirem em manter seus modelos de negócio provavelmente ficarão pelo caminho. As empresas e profissionais com “novo DNA” serão aquelas que abraçarem as transformações e, ainda, que tiverem a coragem (e humildade) de reinventar seus modelos de negócio.
3. A vez dos Hubs Sociais e dos Determinantes Sociais de Saúde
Determinantes Sociais de Saúde (SDOH), fatores não-clínicos que tem influência em cerca de 20% do resultado clínicos dos pacientes, ficarão nos holofotes como alavancas fundamentais para conseguir sistema de saúde sustentáveis. As organizações mais avançadas explorarão os efeitos do SDOH como ferramentas para ter melhores resultados clínicos e, assim, criar vantagens competitivas.
Um exemplo de SDOH é a disponibilidade de transporte que um paciente diabético tem a disposição para se consultar com um especialista e manter a doença sobre controle.
Segundo dados do IBOPE Inteligência, o custo da passagem de ônibus na cidade de São Paulo impossibilitou que 40% dos usuários de transporte público fossem a pelo menos uma consulta médica necessária. Esta situação se agravou neste último ano devido ao aumento de passagem.
Estes Determinantes Sociais de Saúde irão, também, ser discutidos em politicas públicas de promoção de saúde e passarão a ser parte da agenda de entidades setoriais. Ações estruturantes como: (a) o aumento de impostos sobre alimentos não saudáveis que conseguiu reduzir em até 40% o consumo dos mesmos em algumas regiões e (b) implantação na África da Nano Membrane Toilet, privada inteligente que não necessita de rede de esgoto apoiada pelo Instituto Bill & Melinda Gates, são exemplos de politicas bem sucedidas.
Destaco, também, como fator critico de sucesso no futuro, a habilidade de identificar e ativar os Hubs Sociais relevantes para determinadas populações. Estes Hubs serão fundamentais para identificar de forma prematura doenças crônicas e influenciar no resultado de seu tratamento. Exemplos de Hubs Sociais são Carteiros na Inglaterra e Barbearias nos Estados Unidos.
Enfim, um entendimento mais abrangente das váriaveis e alavancas relacionadas à gestão de saúde – que inclui a crescente predominância de sistemas sofisticados de remuneração baseado – é essencial para se manter bem sucedido nesta nova realidade.
4. Desaparecimento da Fronteira entre mundo Físico e Virtual
A adoção de Cuidado Virtual tem se expandido fortemente, em especial nos Estados Unidos. Apesar dos contratempos vivenciados em alguns países em relação à regulação da “telemedicina”, este é um mercado que irá se consolidar ao longo desta década. Aliás, mais do que consolidar… vivenciaremos uma revolução, que terá como base:
A democratização da tecnologia 5G, que será até 100 vezes mais rápida que a tecnologia atual; suportará milhões de dispositivos conectados por metro quadrado versus 4,000 dispositivos do 4G; e redução de tempo de latência de 50ms para 1ms tornando a transmissão de dados virtualmente instantânea;
A adoção em massa de wearables que já atinge 21% dos americanos segundo pesquisa recente do Pew Research Center. Este wearables monitorarão na maioria de nós dados como: batimento e pressão cardíaca, oxigenação do sangue, nível de glicose, qualidade de sono e nível de atividade física.
A evolução de tecnologias de realidade virtual com adoção crescente de hyper-reality e holografia irá convergir para criação de MetaVerses. Nestes ambientes, pacientes e profissionais de saúde irão interagir de forma tal que será pouco perceptivel a diferença entre os mundos físico e virtual.
À medida que esta revolução se consolide e que sejam distribuidos de forma eficiente os pontos de entrada para estes MetaVerses haverá uma queda significativa de idas aos hospitais, algo similar ao impacto da disseminação dos ATMs no mercado bancário.
Enfim, ao final desta próxima decada, a distância fisíca passará a ser uma váriavel de pouca relevância e o mundo virtual estará totalmente integrado ao nosso mundo real.
5. A Ascensão do Consumidor de Serviços de Saúde
Historicamente, o consumidor de serviços de saúde tem sido um recebedor passivo de cuidados médicos.
Esta década vivenciará a ascensão do consumidor de serviços de saúde, que deixará de ser mero paciente e passará a ser protagonista das decisões relacionadas a sua saúde.
Esta transformação terá como alicerce a redução drástica da assimetria de informação e o aumento da transparência, além da entrada de novos atores como health-techs e Big Techs cuja filosofia é o empoderamento do usuário.
As implicações nesta mudança serão: (i) os atores irão se concentrar nas atividades que forem mais efetivos; (ii) mudança para um modelo de saúde focado na promoção de saúde ao invés de tratamento da doença; (iii) e, principalmente, uma maior humanização do tratamento que muitas vezes será o diferencial entre profissionais e empresas bem sucedidas.
Importante ressaltar que a tecnologia impulsionará a tendência de humanização, visto que permitirá automatizar processos repetitivos e liberar precioso tempo para conexão humana. Isto é bem descrito pelo cardiologista Eric Topol com sua visão de HighTech para ser HighTouch.
6. A Era da Inovação Aberta
Viveremos cada vez mais em um mundo integrado e de colaboração, em que cada pessoa, física, jurídica ou virtual, colocará seus ativos a serviço de um propósito em comum.
O mercado pujante das health-techs somado à escolha estratégica das Big-Techs de investir fortemente na vertical da saúde alavancará cada vez mais as oportunidades de as empresas tradicionais do setor alavancarem seus processos de inovação por meio de parcerias.
Esta tendência é confirmada pelo crescimento exponencial de Corporate Venturing – processo colaborativo entre corporações e start-ups e, também, pelos inumeros anúncios de parceria entre as empresas tradicionais de saúde junto as gigantes de tecnologias.
Aquelas empresas tradicionais que abraçarem esta mentalidade irão evoluir se tornarem Medtechs.
Os grandes desafios serão: distinguir distração de inovação; entender que tecnologia é um enabler e que o importa é a estratégia; buscar inovação transformacional e não ganhos incrementais; e criar uma cultura baseado na metodologia Agile.
O final desta década verá supremacia de MedTechs, HealthTechs e BigTechs focadas em Saúde.
7. O verdadeiro “Game Changer”: Medicina Ultra-Personalizada
A base da conduta médica na medicina tradicional está fundamentada em estudos clínicos com pacientes que representam a população que se tem intenção de tratar.
Esta metodologia trouxe bastante progresso. Entretanto, para seguirmos avançando, precisamos de uma abordagem totalmente nova e que supere desafios como, por exemplo, identificar de forma antecipada os indivíduos de uma população alvo que serão não-respondentes ao tratamento.
Os avanços da Inteligência Artificial, Computação Quântica e Impressão 3D levarão a um grande progresso em direção à “Medicina Ultra-Personalizada’.
Esta noticia é especialmente boa para segmentos que são economicamente pouco atrativos segundo a lógica da medicina tradicional, como por exemplo: doenças raras ou pesquisa de novos antibióticos para tratar bactérias e fungos que se tornaram resistentes pelos uso excessivo dos tratamentos atuais.
A visão da Medicina Ultra-Personalizada inclui: (a) mapeamento genético, da atividade epigenética e da composição da microbiota de cada indivíduo; (b) identificação por meio de inteligência artifical e de Digital Twins do tratamento mais efetivo para aquela pessoa; (c) avanços que possibilitem de forma segura aprovação de terapias com base em estudos com N-de-1 usando novas estratégias como Clinical Trials in a Dish (CTiD) e (d) produção em casa, através de impressoras 3D, de comprimidos ou próteses individualizados.
O artigo https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa1813279 publicado em 24 de Outubro de 2019 relata a experiência da paciente Mila na qual foi relatada o primeiro caso de uma droga desenvolvida especificamente para um paciente.
Finalmente, o Estudo Precison Consumer 2030 realizado pela empresa Sparks & Honey projeta que os dados de precisão serão responsáveis por mudanças disruptivas em praticamente todos as indústrias e aponta que as pessoas já estão dispostas a pagar até 20% a mais em produtos baseados em seu próprio DNA.
8. Busca pelo equilíbrio entre Transparência e Privacidade
Em um mundo com crescente tendência de as pessoas compartilharem suas informações privadas em redes sociais e aplicativos da Internet e de demanda para hospitais e operadoras divulgarem resultados clínicos por profissional de saúde nas redes, os governos buscam criar legislações para garantir os direitos individuais de privacidade.
Ao mesmo tempo, o avanço da tecnologia, em especial da visão computacional e Internet dos Corpos, permitirá identificar localização, estado de saúde e comportamento em tempo real e de forma individualizada. Esta possibilidade irá permitir uma gestão muito mais efetiva da saúde.
O avanço tecnológico que possibilitará o armazenamento seguro destas informações usando blockchain, irá, também, permitir o comprometimento destas através da computação quântica.
Por um lado, a maior transparência coloca luz nas relações, reduz o risco de desvios éticos e facilita o acesso a dados individualizados que poderá proporcionar diagnósticos mais precoces e tratamentos mais efetivos, Por outro lado, a demanda da sociedade por privacidade irá gerar um debate que poderá pender para extremos e que deverá atingir um equilibrio até o fim da década.
9. Supremacia da Colaboração Homem-Máquina
No artigo “AI-augmented multidisciplinary teams: hype or hope?” publicado em Nov/19 no The Lancet, Antonio Di Ieva decreta que máquinas não vão substituir médicos, mas médicos usando Inteligência Artificial irão substituir em breve aqueles que não usarem.
As sociedades médicas deverão assumir um papel fundamental em educar seus membros sobre esta transformação e prepará-los para que sejam bem sucedidos nesta nova realidade.
Considero inspirador o exemplo da RSNA – Radiological Society of North America. A sociedade assumiu a missão de educar os radiologistas em relação aos impactos da Inteligência Artificial na área diagnóstico por imagem e ajudá-los a reposicionar o seu papel diante de todas estas mudanças, focando nas atividades que podem gerar mais valor e alavancando os ganhos de produtividade que aprendizagem de máquina podem proporcionar.
Enfim, o próximo nível de transformação digital na assistência médica estará centrada em núcleos inteligentes que facilitem a colaboração homem-máquina e o papel das sociedades médicas será fundamental para guiar seus membros por esta transformação.
10. A revolução da Cirurgia Digital
A Indústria de Saúde é guiada pela busca em resolver as grandes necessidades clínicas não atendidas. Um dos grandes desafios é a redução da variação de cuidado injustificável em procedimentos cirúrgicos.
Segundo dados da Accenture Analysis, o uso de Inteligência Artificial na cirúrgia robótica poderá reduzir esta variação evitável e gerar, apenas no mercado americano, economias da ordem de quarenta bilhões de dólares anuais.
A combinação da Transformação Digital com a Cirúrgia Robótica dará origem à Cirurgia Digital nesta década. Os primeiros sistemas robustos deverão entrar ao mercado nos próximos anos e até o final da década, segundo projeções da Citi Research, 30% de todos os procedimentos nos Estados Unidos já serão realizados utilizado estas plataformas. Acredito que os outros mercados pelo mundo terão uma taxa de adoção similar, motivados pelo ganho de produtividade que este sistema irá proporcionar.
Esta área irá crescer duplo dígito durante esta década e deve se tornar um dos maiores segmentos do mercado de produto de saúde até 2030.
Enfim, uma nova era se apresenta.
Um mundo de novos aprendizados bate à porta.
A escolha é de cada um. Já fiz a minha escolha, com muita responsabilidade: aprender a cada dia, me atualizar, colaborar e viver de forma coerente com a década em que estamos. Te vejo no MetaVerse?