Aos 96, professor de medicina Harvard foi internado e apontou problemas no cuidado do paciente
É inspirador o artigo de Rich Joseph, médico residente no Brigham and Women’s Hospital (EUA), publicado no último sábado (24) no jornal “The New York Times”. Joseph fala da instigante experiência de ter cuidado do médico Bernard Lown, professor emérito de cardiologia em Harvard, prêmio Nobel da Paz e autor do livro “The Lost Art of Healing” (“A perda da arte de curar”, numa tradução livre).
Aos 96 anos, Lown esteve internado para tratar de uma pneumonia e ficou bem irritado com o modus operandi do hospital, ambiente que ele definiu como uma fábrica: “provoca todas as dores e trata todas as anormalidades laboratoriais, mas faz pouco para curar seus pacientes”.
Ele se queixou, por exemplo, da verificação dos sinais vitais (temperatura, pressão arterial e frequência respiratória) a cada quatro horas, prática incorporada na rotina dos hospitais nos Estados Unidos desde a década de 1890.
A questão é que os dados mostram que cerca de metade dos pacientes de um hospital são despertados desnecessariamente para tais verificações. “Como é possível descansar (e melhorar o estado clínico geral) com tanta gente te cutucando e te irritando?”, queixou-se o professor.
Quem já esteve internado ou foi acompanhante de pacientes em hospitais sabe bem o que é isso. No livro, Lown faz um apelo para que se restabeleça a “tradição de 3.000 anos”, ou seja, de um médico e um paciente em uma relação especial de confiança”.
“As ciências biomédicas começaram a dominar nossa concepção de cuidados de saúde, e a cura foi substituída pelo tratamento, o cuidado suplantado pelo gerenciamento e a arte de ouvir, pelos procedimentos tecnológicos”, diz ele em um trecho da obra.
Lown sentiu isso na própria pele enquanto esteve internado. “A cada dia uma pessoa da equipe médica dizia uma coisa pela manhã e, à tarde, o plano mudava”, relatou. “Eu sempre fui o último a saber o que estava acontecendo de fato, e minha opinião quase nunca não era importante”.
Outra situação que ele tratou no livro e que depois vivenciou como paciente foi a fragmentação dos cuidados médicos. “Os médicos já não olham a pessoa por inteiro, mas sim se preocupam com partes do corpo com defeito”, escreveu.
Após a alta hospitalar, médico e paciente continuaram trocando ideias sobre a urgência em promover mudança no sistema de saúde. Para fazer isso, Lown diz que “‘médicos de consciência’ precisam resistir à industrialização de sua profissão”.
A mudança deveria começar nas escolas médicas, que hoje têm uma educação muito mais voltada às ciências biomédicas e com pouca ênfase nas humanidades, em disciplinas como comunicação, dinâmicas interpessoais e liderança. Eu acrescentaria, por minha conta e risco, gestão e psicologia também.
Na opinião da dupla, essas habilidades não só ajudariam os médicos a cuidar melhor de seus pacientes, mas também fortaleceriam a defesa da saúde como um direito humano. De quebra, também poderia colaborar para a correção de distorções (como desperdícios e “incentivos”) que hoje geram custos altíssimos aos sistemas de saúde.
O autor finaliza com uma mensagem bem importante: hospitais devem ser o último recurso e não a marca do sistema de saúde. A maior parte dos recursos com cuidados em saúde deveriam ir para a comunidade, já que a maioria dos problemas é moldada por fatores não médicos, como poluição e acesso limitado a alimentos saudáveis.
Todas essas questões são aplicáveis ao Brasil, mas por aqui temos problemas adicionais, como a má qualidade do ensino médico por conta da proliferação de faculdades de medicina ruins impulsionada graças aos lobbies diversos. De acordo com o último“provão” do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo), 35,4% dos médicos que participaram do exame em 2017 acertaram menos de 60% das questões.
Ainda que o desempenho dos formandos em medicina tenha melhorado em relação às edições anteriores do exame, é muito preocupante saber que mais de um terço dos jovens médicos que estarão atendendo por aí não desconhecem coisas básicas (por exemplo, 88% não conseguiram interpretar o resultado de uma mamografia, 78% não souberam diagnosticar diabetes e 40%, um caso de apendicite aguda).
Discutir sobre essas questões e buscar saídas deveria ser uma preocupação não só da classe médica, mas de toda a sociedade. Deixar para pensar nisso na porta do pronto-socorro, onde vão atuar muitos desses médicos recém-formados, pode ser tarde demais.