AUTORIA: Guilherme Brauner Barcellos (apresentação no próprio Blog) e Lucas Santos Zambon, membro do colegiado diretivo da Academia Brasileira de Medica Hospitalar (ABMH), diretor do Instituto Brasileiro para a Segurança do Paciente (IBSP) e primeiro coordenador de comitê de segurança do paciente do primeiro conglomerado para promoção de hospitalistas criado no país há mais de uma década atrás. / Nossa apresentação representa ainda declaração de conflitos de interesse.
Estudo publicado em novembro, no JAMA, e intitulado “Comparison of Hospital Resource Use and Outcomes Among Hospitalists, Primary Care Physicians, and Other Generalists”, ascendeu discussões sobre o valor de hospitalistas.
O objetivo foi examinar as diferenças no uso de recursos e nos desfechos entre pacientes internados para hospitalistas, médicos da atenção primária (primary care physicians – PCPs) e outros generalistas. Foi coorte retrospectiva, com usuários do Medicare – mais de 65 anos, avaliando-se as 20 DRG’s mais comuns. Definiu-se como PCP o generalista com a maioria das contas ambulatoriais anteriores à hospitalização em seu nome. E foram determinados como hospitalistas os generalistas que tiveram a enorme maioria de suas cobranças relacionadas a pacientes internados. Quem não se enquadrava em nenhum dos dois critérios caia no grupo dos generalistas “inespecíficos”.
Como resultados gerais traz o seguinte: dentre as mais de 560 mil admissões avaliadas (59% de mulheres, idade média global de 80 anos), hospitalistas cuidaram de 59,7% dos casos e PCPs de 14,2%. Pacientes de hospitalistas tiveram permanência hospitalar 12% menor que dos PCPs e 6% menor que os outros generalistas, e usaram consultorias e especialistas focais 3% menos que os PCPs e 6% menos que os demais. PCPs mandaram 4,5% mais casos de alta para casa em comparação aos hospitalistas, que utilizaram mais do recurso de institucionalização de pacientes pós-alta então. Em relação aos hospitalistas, as readmissões em 7 e 30 dias foram iguais a dos PCPs, tendo os outros generalistas pior desempenho nos 2 itens. Em relação aos hospitalistas, a mortalidade ajustada em 30 dias dos casos dos PCPs foi 6% menor, enquanto que o terceiro grupo teve mortalidade ajustada 9% maior.
Concluiu, dentro das suas limitações, que, embora alguns parâmetros de eficiência hospitalar sejam melhores com hospitalistas, há aumento de mortalidade em comparação a generalistas que conduzem seus pacientes ambulatoriais no hospital, desde que respeitem os princípios de verdadeira coordenação, longitudinalidade e integralidade do cuidado.
Trata-se de um estudo observacional. O potencial viés do desenho observacional é maior do que em qualquer outro. Pode gerar hipóteses, mas, como regra, não deve ser visto como definitivamente verdadeiro, por mais contundente que aparente ser a conclusão, a nossa aqui atrelada a um NNT de 45 na comparação entre PCPs e hospitalistas, o que, tratando-se de prevenção de óbitos, seria de grande impacto.
Não bastasse a simples natureza observacional do estudo, pacientes cuidados por hospitalistas utilizaram mais UTIs e/ou grandes hospitais e instituições de ensino, sugestão de que eram mais graves. Houve, no grupo dos hospitalistas, maior quantidade de admissões em finais de semana, fator por si só associado com aumento de mortalidade. Não há dados disponíveis que permitam avaliar mais profundamente diferenças de complexidade e do risco intrínseco de óbito entre os grupos, bem como do desempenho médio das UTI’s envolvidas (um exemplo seria termos ideia do índice de comorbidade de Charlson entre as populações comparadas, ou do comparativo de coeficientes de letalidade ajustada entre os blocos de UTIs envolvidos). O critério utilizado para definir hospitalista versus PCPs pode representar a escolha de alguns PCPs por encaminharem seletivamente pacientes mais complexos para hospitalistas, algo que, na prática, sabemos acontecer. Tendo em vista o uso da mortalidade em 30 dias, parte dela poderia estar contaminada pelo resultado do cuidado pós alta, o que não deixa de falar a favor do PCP nos dois blocos (hospitalar e ambulatorial).
O furor determinado por este estudo não se justifica também por outra razão, talvez a principal: não traz novidades. Já sabíamos, por corpo de evidências anterior e de melhor qualidade, da redução de tempo de permanência no hospital. Previamente à 2013 foi inclusive mais expressiva. Já sabíamos também que o impacto em mortalidade era questionável. Sem poder afirmar que existe qualquer prejuízo em mortalidade com hospitalistas (antes e depois deste estudo), e com os pés no chão de quem reconhece que o contrário é também verdadeiro, historicamente defendemos, e seguiremos defendendo, o modelo como sinônimo de eficiência e sustentabilidade – “apenas” isto. Exceção de quando o comparamos a caricaturas do modelo tradicional – infelizmente ainda toleradas em nosso meio. Acreditamos ainda, por outras fontes, ser o hospitalista capaz de melhorar desfechos de qualidade adicionais (eficiência já está claro, mas também taxa de adesão a padronizações e iniciativas de melhores práticas, comunicação no ambiente hospitalar, experiência do paciente e segurança, tanto no que tange à incidência de eventos adversos intra-hospitalares, quanto ao fortalecimento da cultura), questões não avaliadas no estudo do JAMA. Nada de novo então…
Razão pelo qual entendemos, e sempre foi assim, que onde puder ser mantido o modelo tradicional, como em hospitais de baixa complexidade de pequenas cidades, é provavelmente a melhor alternativa, certamente a mais custo-efetiva. Historicamente, defendemos, ainda, que hospitais mantenham, sempre que possível, as portas abertas para as duas possibilidades (MH e modelo tradicional), exigindo de forma equânime o cumprimento de padrões mínimos de qualidade*, jamais utilizando uma para cobrir deficiências da outra (sinônimo de fragmentação desnecessária e maiores custos globais, lembrando que, ao cabo, quem paga a conta são os pacientes/familiares). Não queremos crescer por mandato, mas por necessidade que acreditamos existir por diversas razões.
*David Klocke, Chair, Division HM, Mayo Clinic em 04/10/2010 para Barcellos: Dedicated full time hospitalists improve the care of hospitalized patients. This has been clearly demonstrated in the United states. Hospital administrators need to advocate for hospitalists or equally dedicated physicians who work a large proportion of their time in direct patient care in the hospital. Administrators must also measure quality indicators, mortality, length of stay, readmissions, infection rates, cost per case and other metrics and set minimum standards for physicians who practice in their hospital whether they are traditional internists or hospitalists. The standards should be the same for all.
Umas destas razões, já mencionada, é sustentabilidade do sistema. No que tange à redução de tempo de permanência hospitalar, que concluímos seja compatível com a verdade por outros estudos de melhor qualidade, vejamos o que significaria, utilizando a Virtual Capacity Calculator, do Advisory Board.
Utilizando-se de taxa de ocupação de 61%, valor que encontramos para a média dos hospitais norte-americanos em 2012, percebemos:
Equivale a quase uma dezena dos badalados grandes hospitais de São Paulo… Equivale à acesso, melhores oportunidades, mais pacientes certos no lugar certo, isto tudo sem precisar levantar paredes!
Ao aplicarmos a mesma taxa de redução de tempo de permanência em conjunto com dados de um hospital brasileiro em que trabalha um dos autores, reflitam sobre o impacto local e sistêmico que podemos gerar (simulação abaixo). Impacto nos sempre lotados departamentos de emergência. Em nossos hospitais sempre ávidos por leitos para deslocar pacientes que ficam em subcondições de assistência por represarem no lugar errado, ou mesmo nas nossas unidades de terapia intensiva, de leitos sempre ultra disputados (e caríssimos de serem ampliados) e cuja oferta pode ser melhor equilibrada se houver mais chance de vazão dos pacientes de alta das UTIs para as enfermarias.
92 é praticamente o número de leitos que hospital privado de Porto Alegre entregou também no mês de novembro, num investimento de cerca de R$ 112 milhões (dados amplamente divulgados na internet), em cidade que nem mesmo a administração pública nega que tem menos leitos para internação do de que precisa (G1, 17/05/2016), prejudicada por grave crise financeira, que acomete entes públicos e a maioria das organizações privadas.
Outra mensagem que acreditamos este estudo reforça (e não exatamente traz como novidade), é a necessidade dos hospitais brasileiros fugirem de modelos vigentes. Seja o de cuidado centrado em especialistas focais (questão já bem avaliada em outros estudos – modelo péssimo quando lida com alta carga de pacientes idosos multimórbidos, o novo “normal”). Seja o com médicos que nem são os responsáveis pelos cuidados primários do paciente, nem trabalham de forma mais orgânica com a instituição. Além daquele com médicos diferentes a cada dia no hospital, em regime de escala fragmentada, obviamente também sem continuidade extra-hospitalar. Há tempos enxergamos esta última modalidade como potencialmente determinante de danos em larga escala, e inclusive rechaçamos que seja chamada de Medicina Hospitalar (MH).
Há ainda o problema brasileiríssimo de indefinição entre quem é generalista e quem é especialista focal, melhor abordada neste texto de Barcellos para a revista Live Medicina Interna, de Portugal. É a antítese de um modelo de cuidado por trás de atuações individuais, assim como ocorre com generalistas “inespecíficos”.
Concluindo, não há evidências para afirmar que o modelo hospitalista aumenta mortalidade. Nem que melhora. O que há de evidências aponta para um caminho mais sustentável com a MH, muito provavelmente seguro desde que respeitada a menor fragmentação possível (já vem com o modelo a quebra de continuidade entre cuidado hospitalar e ambulatorial, e deve ser atentamente trabalhada). Desde que fragmentação adicional, quando existir, seja por real necessidade, jamais conveniências – o que nos leva a não se credenciar sequer a subir no cavalo.