ENTREVISTA – CENÁRIO ECONÔMICO NACIONAL ATINGE MERCADO DE SAÚDE SUPLEMENTAR

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A crise econômica pela qual o país está passando atinge, também, o mercado de planos de saúde. Com o aumento do número do desemprego, os planos de saúde perderam, segundo dados da ANS, mais de 190 mil beneficiários entre dezembro de 2016 e janeiro de 2017. Segundo o superintendente executivo do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), Dr. Luiz Augusto Carneiro, as dificuldades das operadoras se refletem ainda no modelo de remuneração, que está em discussão, mas ainda sem consenso.

“Essencialmente, os serviços hospitalares no Brasil se baseiam no sistema de conta aberta (fee-for-service), no qual os agentes buscam a máxima remuneração possível pelos serviços prestados. Essa conta acaba por arcar ineficiências, desperdícios, falhas operacionais, reinternações e por aí afora. É um sistema também que permite práticas desleais de mercado, oscilações significativas de preços e até corrupção. O Brasil está há mais de 30 anos atrasado em relação aos outros países na alteração dos modelos de pagamento. Enquanto o Brasil não alterar esse sistema de remuneração por serviços de saúde, adotar e dar transparência aos indicadores de qualidade e de assistência aos pacientes e não alterar o modelo de avaliação de qualidade assistencial e remuneração pelos serviços, combatendo fraudes e desperdício e premiando a eficiência, a saúde suplementar brasileira seguirá em risco. E, com a situação econômica negativa, também terá sua situação agravada”, afirmou.

Quanto aos planos de saúde acessíveis, Carneiro diz que é preciso esperar a proposta final do Governo, mas acredita que a medida será favorável. “Vamos aguardar para ver o que virá e a decisão de comercialização caberá a cada operadora. Em tese, com base nas informações que nos chegam, todas as operadoras desse mercado, inclusive filantrópicas, poderão ofertar esses produtos”, disse.

Acompanhe a íntegra da entrevista:

CMB/RSF – A crise econômica brasileira reduziu os postos de trabalho e, consequentemente, atingiu o número de beneficiários dos planos de saúde. É possível dizer que há também uma crise no mercado de planos de saúde? Esse seria o único motivo?
Luiz Augusto Carneiro – O mercado de planos de saúde passa por um momento difícil por conta de problemas estruturais que acabam por ser potencializados por fatores conjunturais. Esse mercado passa por um momento de extrema fragilidade e tem sua sustentabilidade econômica, financeira e assistencial em risco. Começando pelas questões conjunturais, a crise econômica atinge fortemente esse setor. O saldo acumulado dos anos de 2015 e 2016 é de perda de 2,55 milhões de beneficiários do sistema. Isso foi provocado, majoritariamente, pela queda do nível de emprego, pois a maioria do mercado (mais de 66% das contratações) advém de planos coletivos empresariais, ou seja, aqueles fornecidos pelas empresas como benefício a seus colaboradores. Um dado que é pouco falado porque é difícil de se mensurar, mas que o mercado comenta bastante, é que também houve um processo de downgrade muito forte de várias empresas contratantes, visando contar a escalada de custos. Então, além da queda de beneficiários nas carteiras, as operadoras também tiveram de conviver com a troca das empresas contratantes por planos mais simples, de rede assistencial mais limitada, o que prejudica também o sistema.

A situação se agrava quando analisamos os problemas estruturais dessa cadeia, que se manifesta no índice Variação dos Custos Médico-Hospitalares (VCMH), produzido pelo IESS. Em 2015, mesmo com a perda de 1,18 milhão de beneficiários, o VCMH/IESS aumentou 19,3%. Ou seja, a diminuição do número de beneficiários deveria repercutir em diminuição das receitas, mas também na queda dos custos. O VCMH é apurado em cima de pagamento de faturas de uma amostra de um milhão de beneficiários de planos individuais de um conjunto de operadoras, considerando a combinação de custos por procedimento e a frequência dos procedimentos. Até março de 2016, registrava alta de 19% e não temos nenhuma informação do mercado que indique que esse quadro se reverteu. Acreditamos, inclusive, que o VCMH/IESS permanecerá nesse mesmo patamar no fechamento de 2016.

Quais são as causas que explicam, então, esse fenômeno? Dois fatores são mundiais e se repetem no Brasil: o processo de envelhecimento populacional, que gera mais demanda por serviços de saúde; e a adoção de novas tecnologias, quase sempre não substitutivas às já existentes e nem sempre implementadas a partir de uma análise de custo-efetividade e, principalmente, de uma avaliação econômica se os sistemas têm condições de absorver esses custos. O outro fator é algo bem particular do Brasil e tem a ver com o nosso modelo de pagamento por serviços de saúde. Essencialmente, os serviços hospitalares no Brasil se baseiam no sistema de conta aberta (fee-for-service), no qual os agentes buscam a máxima remuneração possível pelos serviços prestados. Essa conta acaba por arcar ineficiências, desperdícios, falhas operacionais, reinternações e por aí afora. É um sistema também que permite práticas desleais de mercado, oscilações significativas de preços e até corrupção. O Brasil está há mais de 30 anos atrasado em relação aos outros países na alteração dos modelos de pagamento. No mundo moderno, usa-se o sistema de pagamento por diagnóstico, pagamentos por performance e até o pagamento por valor gerado, entre outras modalidades. Isso tudo se baseia em sistemas muito bem estruturados e de transparência em torno da avaliação de qualidade e desempenho e precificação justa, inclusive comparando desempenho entre concorrentes. Enquanto o Brasil não alterar esse sistema de remuneração por serviços de saúde, adotar e dar transparência aos indicadores de qualidade e de assistência aos pacientes e não alterar o modelo de avaliação de qualidade assistencial e remuneração pelos serviços, combatendo fraudes e desperdício e premiando a eficiência, a saúde suplementar brasileira seguirá em risco. E, com a situação econômica negativa, também terá sua situação agravada.

CMB/RSF – Algumas entidades representantes de planos de saúde estão apostando na proposta do Ministério da Saúde, da criação de planos acessíveis, como uma forma de melhorar a economia do setor. Como o Sr. vê essa medida?
Luiz Augusto Carneiro – Acreditamos que os planos mais acessíveis são uma boa medida para aumentar as alternativas para o consumidor brasileiro. Ela é importante, bem-vinda e ajuda o mercado, mas certamente não vai ser a solução definitiva para os males desse setor. O foco é, e deve sempre ser, o beneficiário.

CMB/RSF – A maneira como o governo está discutindo e apresentando a proposta de planos de saúde acessíveis atenderia o mercado? O segmento filantrópico, por exemplo, poderia se encaixar nessa medida?
Luiz Augusto Carneiro – O setor tem sugerido, ao longo dos anos, a construção de diversificação de produtos, considerando, por exemplo, alternativas de cobertura, de redes assistenciais e de formatação de reajuste, tendo em vista, inclusive, aspectos regionais. Se a proposta em curso vai atender ao mercado só o tempo dirá, mas tem grande chance de ser bem-sucedida, pois acertadamente o Ministério da Saúde convidou todos os agentes e elos da cadeia produtiva da saúde a participar da construção desses produtos. Vamos aguardar para ver o que virá e a decisão de comercialização caberá a cada operadora. Em tese, com base nas informações que nos chegam, todas as operadoras desse mercado, inclusive filantrópicas, poderão ofertar esses produtos. Claro que será uma decisão comercial de cada organização, individualmente. É importante termos em mente que, conforme demonstra a pesquisa Ibope/IESS, o plano de saúde é o terceiro principal desejo do brasileiro, depois de educação e casa própria. E a maioria que não possui, segundo a pesquisa, não o tem porque não tem condições financeiras para contratar. Então, construir alternativas a custos menores é algo que, a nosso ver, atende a um desejo da sociedade brasileira.

CMB/RSF – Quais os benefícios para as operadoras que passarem a oferecer esses planos?
Luiz Augusto Carneiro – Muito difícil responder. Isso vai depender muito da formatação que for apresentada e das alternativas de produto final, suas características de cobertura.

CMB/SRF – Como ficaria a possibilidade de negociação dos prestadores de serviços às operadoras, como hospitais e clínicas, nos planos acessíveis?
Luiz Augusto Carneiro – A nosso ver, o padrão de negociação tende a se manter o mesmo, pois é uma relação bilateral de negociação entre as operadoras e os prestadores. Vai depender da formatação dos produtos, do tamanho da rede assistencial, da cobertura e dos padrões previamente estabelecidos pelo governo. Mas a negociação deverá continuar sendo bilateral, como é hoje.

CMB/RSF – Outra medida que vem sendo discutida pelas operadoras e pela ANS é a mudança no modelo de remuneração dos prestadores. O que falta para que seja definida uma nova proposta? Há alguma legislação que exija que um padrão único seja adotado? Ou cada operadora pode adotar um sistema diferente para a remuneração?
Luiz Augusto Carneiro – Falta o setor chegar a um consenso. O debate realmente se dá há anos, há convicção de todos os elos da cadeia produtiva da saúde de que o modelo atual não é sustentável, mas as partes não chegam a um acordo. Já há alguns projetos que trabalham com DRG, outros com pacotes, mas ainda são casos isolados. Diante da necessidade de mudança e como os elos da cadeia produtiva não chegam a um acordo, talvez tenha chegado o momento de isso ser normatizado por regulação ou até por força de lei.

CMB/RSF – Qual a posição do IESS em relação às mudanças no modelo de remuneração? O fee for service é, de fato, um modelo ultrapassado?
Luiz Augusto Carneiro – O IESS tem oferecido um farto e exaustivo material de referência a respeito da modernização dos modelos de pagamento. Está tudo em nosso portal, com estudos, palestras e diversos conteúdos para apoiar a compreensão do tema. O fee-for-service é ultrapassado para alguns procedimentos e diagnósticos, mas, para outros, não. As boas práticas em mercados maduros têm usado fee-for-service para diagnósticos no qual o desfecho clínico é de difícil previsão. É o que acontece, por exemplo, em casos relacionados às doenças que acometem pacientes com HIV ou alguns quadros de recém-nascidos prematuramente e com diversas complicações. Quando diversas variáveis dificultam o desfecho clínico ou casos em que não é possível adotar modelos preditivos, o fee-for-service se mostra como uma saída adequada. Mas a maioria dos diagnósticos, mesmo com comorbidades, permitem a adoção de modelos preditivos e a modernização dos modelos de pagamento e de mensuração da qualidade permitem que, rapidamente, o fee-for-service pode ser substituído por sistemas mais eficientes, inclusive considerando modelos híbridos. A grande dificuldade de se abandonar o fee-for-service está em mudar a mentalidade de transferência de risco. Hoje, todos os erros e desperdícios acabam, direta ou indiretamente, sendo precificados na conta hospitalar. Se o modelo for alterado, o risco terá, necessariamente, de ser compartilhado entre as fontes pagadoras e os prestadores. Essa é a grande mudança necessária, dentro de um modelo mais amplo de gestão de saúde, que tenha o paciente no centro do debate e que ele participe também da tomada de decisão, pois, além de ser a parte mais interessada em termos de saúde, é ele também que paga a conta.

CMB/RSF – Que outros itens podem ser discutidos para amenizar a crise na Saúde Suplementar e – por que não? – vencê-la?
Luiz Augusto Carneiro – Insistimos que não consideramos, necessariamente, que o setor esteja em crise, mas em dificuldades. A agenda deve ser centralizada em novos meios de melhorar a gestão da saúde das pessoas, empoderando os pacientes e tornando-o partícipe do processo de decisão. Além disso, o sistema de pagamento por serviços precisa se modernizar, como dito antes. Se o modelo assistencial for alterado e a remuneração modernizada, mais eficiente e racional, também será possível avançar em agendas fundamentais, caso de combater as falhas de mercado, prover transparência das informações e assegurar um alinhamento de interesses de todos os elos dessa cadeia. O IESS acredita fortemente que isso é possível e, de nossa parte, estamos municiando todo o setor e toda a sociedade brasileira com o máximo da nossa capacidade de produção de conhecimento para que o sistema de saúde se torne sustentável.