Organizações sociais de interesse público – O tabu e a hipocrisia

Urge seja rechaçada a hipocrisia que reveste o estudo do Terceiro Setor quebrando-se o tabu e discutindo-se o custo transacional e o crescimento dessas entidades, de forma realista e prática, com os precisos contornos da legislação que a rege.

“Em resumo, a teoria jurídica brasileira perdeu o hábito de discutir os porquês não jurídicos da criação de novas leis; entretanto, leis são produzidas a fim de resolver problemas reais da sociedade, e de não solver disputas dogmáticas. E os grandes reais problemas a serem resolvidos na sociedade são de natureza econômica e política.”
(Luciano Timm)1

Não se pretende, aqui, estudar definições, conceitos e história do Terceiro Setor, e as razões de seu surgimento. No entanto, breve contextualização é necessária.

A atuação da sociedade civil como elemento de auxílio a políticas públicas não é novidade. Em termos mundiais, remonta a séculos, e, no Brasil, tem início com as instituições religiosas, em um primeiro momento, evoluindo-se “a posteriori”, para movimentos sindicais, buscando melhorias nas relações de trabalho, movimentos estudantis, na busca por direitos sociais negados pela Ditadura e em diversas manifestações próprias da sociedade como um todo.

Nesse sentido, verificou-se a participação da denominada sociedade civil, através das instituições religiosas, com ênfase na saúde pública, notadamente através das conhecidas Santas Casas de Misericórdia.

Ao longo dos anos, a própria industrialização e urbanização, condutores naturais da modernização da sociedade, ampliou a complexidade dos problemas sociais, culminando com a proliferação de entidades, dessa feita sem fins religiosos, nem setoriais, mas sem fins lucrativos e voltadas ao interesse público.

E, em paralelo, observou-se, a partir da CF/88, a busca pelos agentes políticos a proteção integral de Direitos Sociais, de forma plena e igualitária à população, mediante a obrigatoriedade de uma série de políticas públicas, constitucionalmente definidas.

Entretanto, não menos verdade é que o Estado foi engessado pela mesma Carta Magna, fazendo com que o Poder Público não consiga fazer mínima frente aos graves problemas de concretização dessas mesmas políticas públicas, principalmente em tema de Saúde e na Educação.

Como consequência, fortaleceu-se o Terceiro Setor, que seria a soma dessas organizações não governamentais e tampouco voltadas a busca de lucro.

Assim, em uma definição para lá de genérica, o Terceiro Setor é uma composição derivada, que conjuga as finalidades do Primeiro Setor (público, voltado aos interesses da coletividade), com a metodologia do Segundo Setor (finalidade lucrativa, voltadas ao interesse próprio).

Em síntese, ter-se-ia o ideal da perfeição: a incessante proteção à coletividade, pelos meios eficientes e de resultados obtidos pelo setor privado.

Contudo, é no preciso momento em que se exige a perfeição que a ferocidade da realidade concreta derruba o ideal pretendido.

Assim é que foi constatado que as organizações não governamentais acabavam deficitárias, não se sustentavam e, por fim, tornavam-se tão ou mais ineficientes e custosas quanto o próprio Estado.

Novamente a título bem mais do que explicativo, veja-se no país todo a sistêmica desintegralização e falência das Santas Casas de Misericórdia.

Nenhuma novidade no constatado, uma vez que, como bem explicado por Coase, em seu teorema, se o custo se sobrepõe ao benefício da transação, o resultado é ineficiente e, como tal, não existe interesse na transação.

E, diante do problema REAL da sociedade, leis foram criadas, buscando meios de fortalecer o terceiro setor, com regras claras e disposições transparentes, possibilitando, inclusive, que pessoais reais e interessadas pudessem desenvolver atividades de fundo econômico (não empresário), na consecução desses objetivos.

Dentre essas leis, destaca-se aqui a lei 9.790/99, devidamente regulamentada pelo decreto 3.100/99, que introduziu a qualificação de OSCIP – Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, assim como o Termo de Parceria, instrumento pelo qual a referida organização não governamental atua.

Nos referidos diplomas legais, regulou-se remuneração e excedentes financeiros, bem como os meios de utilização desses excedentes financeiros. Estabeleceu-se, enfim, a própria forma de pela qual a entidade estará apta a captar recursos.

Poder-se-ia pensar: equacionado o problema, passa-se à efetivação dos serviços dessas entidades, devidamente certificadas, certo?

Não! Uma vez mais, na grande Pátria Amada Brasil, os dogmas lutam para vencer a realidade, impondo restrições inexistentes, e discutindo o Terceiro Setor sob a ótima exclusiva do engessamento do próprio Estado, que já se mostrou falido para efetivar os tão sonhados direitos sociais.

Em outras palavras, juristas e juízes, doutrinadores e mestres, passam a construir verdadeiros tratados, comprovando – de forma unicamente dogmática e conceitual – que as OSCIPS, como integrantes do idealístico terceiro setor, não podem ser remuneradas, nem mesmo através da cobrança de taxa de administração, ou despesas operacionais.

A cobrança de taxa de administração – ou despesas operacionais -, no entender dos acadêmicos e estudiosos, desnaturaria o Termo de Parceria, porque configuraria lucro.

Ora, “concessa venia”, no sábio dizer de minha avó, provavelmente transmitido pela erudita anciã excelentíssima senhora minha bisavó, imigrante na roça dessa amada pátria, não se pode mais tapar o sol com a peneira!

Não se tem pretensão de desenvolver demonstrações econômicas, mas é fato público e notório, que toda transação, ainda que sem natureza econômico-financeira, envolve custo.

Para obtenção de informação, na formulação de projetos de políticas públicas, existe custo. Para qualificação das entidades, existe custo. Para gerenciamento e implantação de projetos, existe custo. Para análise e prestação de contas, exige custo.

Enfim, toda a existência de uma entidade (criação, operacionalização, crescimento) envolve custos, sejam diretos ou indiretos, quantificáveis ou não, precificáveis ou não; eles lá estão.

Aliás, nem mesmo em Direito Público hoje, pode-se dispensar valores como eficiência, economicidade, segurança jurídica e racionalidade econômica. A coerência e a integridade das ações é que refletem a análise da eficiência do resultado, contraposto ao custo dessa transação.

Portanto, começando a quebrar um tabu: sim, a legislação criou formas de remuneração da organização social de interesse público!

Não, isso não é um palavrão.

Não, cobrança de taxa de administração ou despesas operacionais, dentro do termo de parceria nem o desnatura, nem é indicador de lucro.

Em verdade, a cobrança da famigerada taxa de administração encontra esteio jurídico-conceitual para fora até mesmo do Termo de Parceria, contemplando o parágrafo único do artigo 39 da Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 127/08, exatamente, o limite de 15% para custeio das despesas administrativas da entidade com o objeto até mesmo de convênios.

E, isto porque excedente financeiro não é lucro.

Estabelece a própria lei 9790/99 que:

“Art. 1o Podem qualificar-se como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público as pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, desde que os respectivos objetivos sociais e normas estatutárias atendam aos requisitos instituídos por esta Lei.

§ 1o Para os efeitos desta Lei, considera-se sem fins lucrativos a pessoa jurídica de direito privado que não distribui, entre os seus sócios ou associados, conselheiros, diretores, empregados ou doadores, eventuais excedentes operacionais, brutos ou líquidos, dividendos, bonificações, participações ou parcelas do seu patrimônio, auferidos mediante o exercício de suas atividades, e que os aplica integralmente na consecução do respectivo objeto social.” – gn

E, definindo quais são as atividades da OSCIP que configuram possibilidade de auferir recursos, estabelece a mesma lei que:

“Art. 3º –

Parágrafo único. Para os fins deste artigo, a dedicação às atividades nele previstas configura-se mediante a execução direta de projetos, programas, planos de ações correlatas, por meio da doação de recursos físicos, humanos e financeiros, ou ainda pela prestação de serviços intermediários de apoio a outras organizações sem fins lucrativos e a órgãos do setor público que atuem em áreas afins.” – gn

Como relembra JOSÉ PACHECO DA SILVA, “na lei não existem palavras inúteis. Todas elas têm um sentido próprio e adequado2.

Ou na lição clássica de CARLOS MAXIMILIANO: “Presume-se que a lei não contenha palavras supérfluas; devem todas ser entendidas como escritas adrede para influir no sentido da frase respectiva”3.

As expressões do Direito interpretam-se de modo que não resultem frases sem significação real, vocábulos supérfluos, ociosos, inúteis. Ora, em não havendo na lei palavra desnecessária, e prevendo a lei que:

1) A OSCIP não está impedida de ter excedente operacional, somente de distribuí-lo sob qualquer título;

2) a OSCIP aufere o seu patrimônio executando diretamente ou prestando serviços, inclusive ao Poder Público, in casu, Prefeitura do Município de Cotia;

Outra não é a conclusão que a OSCIP pode, sim, emitir Nota Fiscal para a taxa de administração, inclusive no intuito de crescer e melhorar as atividades contidas no seu objeto social.

Se mais não fosse, bastaria a interpretação sistemática da Lei em comento, para dela extrair com segurança a conclusão aqui defendida.

Basta observar a importância que o legislador atribuiu à necessidade de descaracterizar o excedente financeiro da figura do lucro, destacando-o ao elevá-lo de simples recomendação ao patamar de princípio e norte na interpretação da própria lei que criou as OSCIPs, colocando-a no caput do artigo primeiro, exatamente junto à conceituação do que é a organização da sociedade civil de interesse público.

Por outro lado, já não se discute, a remuneração dos conselhos e dos diretores das OSCIPs, com recursos oriundos dos termos de parceria.

Ora, como então vedar a taxa de administração, quando o valor em questão se justifica para fazer frente aos custos gerados para a entidade, de forma direta e indireta, exatamente em função da execução do objeto do termo de parceria, e também para consecução de seu objeto social?!

Ou seja, o próprio pagamento de uma taxa de administração e/ou despesas operacionais, em um contexto de parcerias, consiste em um instrumento de fomento do Estado, indispensável para que a entidade privada sem fins lucrativos possa organizar-se satisfatoriamente para bem cumprir suas tarefas – e jamais se configura como lucro da entidade.

Primordialmente, eventuais excedentes da entidade deverão, por força de lei, serem aplicados em seu próprio objeto, de forma a expandir e fortalecer a entidade, possibilitando que continue a atuar nas áreas de interesse público.

Por fim, não se olvide que as organizações sociais de interesse público estão sujeitas e obrigadas a prestar contas da utilização de todos os repasses e doações recebidas, não só aos Tribunais de Contas, mas também ao Ministério da Justiça, garantindo que o recurso recebido seja, exclusivamente, destinado para a implementação da atuação social, sob pena de perda de sua qualificação e responsabilização pessoal de seus dirigentes.

Em verdade, a expressa previsão dessa taxa ou despesa operacional é tratar a “res publica” com a transparência que a mesma merece.

Acaso o correto seria contratar todo o pessoal interno da entidade, seus custos, alugueis, luz, água, telefone, debitando diretamente do termo de parceria, como “jabutis” inseridos à socapa??

Note-se que, mantido o superficial entendimento de que a taxa de administração desnatura o termo, sem que se verifique a correta utilização desses recursos pela entidade, seria o equivalente a dizer que nenhuma entidade pode crescer!

E se não pode crescer, exercitar o fomento social, utilizando corretamente seus excedentes financeiros, o que seria a entidade senão uma forma de burla às regras da Administração Pública, limitada a intermediar compra de insumos e contratação de pessoas e serviços, ilegalmente contornando a lei de licitações?

Pois, ao entender que a entidade não deve crescer, deve apenas receber recursos públicos e repassar os pagamentos de serviços de terceiros realizados,estão os dogmáticos cerceando o Terceiro Setor e lançando-o como um mero apêndice governamental, sustentado e umbilicalmente ligado do Poder Público contratante, como um ramo da Administração Pública, autorizado a remunerar seus dirigentes apenas para enganar as normas que regulam os demais atos administrativos!

O fomento social da entidade – através da utilização de excedente financeiro – nada mais é do que a própria essência do Terceiro Setor!

De todo o exposto, e dispensados os termos jurídicos e técnicos, aos ferrenhos dogmáticos, que torcem os fatos para caber na lei, porque dela ideologicamente discordam, resta uma constatação:

Senhores, não há almoço grátis! Como se vê, pode-se ter almoço sem lucro, mas não sem custo!

Urge, pois, seja rechaçada a hipocrisia que reveste o estudo do Terceiro Setor – inclusive porque é hoje um dos maiores empregadores do país – quebrando-se o tabu e discutindo-se o custo transacional e o crescimento dessas entidades, de forma realista e prática, com os precisos contornos da legislação que a rege.

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1 in “Decisões que violam precedentes judiciais dificultam o “cálculo do risco econômico” – 14 de dezembro de 2015, 6h52, www.conjur.com.br)
2 (“Tratado das Locações, Ações de Despejo e Outras”, São Paulo, 9a ed., RT, 1994, pág. 405).
3 (“Hermenêutica e Aplicação do Direito”, 16a ed., Rio de Janeiro, Forense, 1996, pág. 110)

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*Ana Paula Caodaglio é advogada em Caodaglio & Associados Advogados.