Quando o Judiciário intervém, ordenando o fornecimento de um produto ou serviço de saúde — independentemente de comprovação de eficácia — ele assume o papel do gestor.
“A saúde é direito de todos e dever do Estado.” Estas dez palavras do artigo 196 da Constituição têm causado, nos últimos 27 anos, um imenso debate. Não há como deixar de reconhecer o avanço que representa a garantia do direito à saúde, especialmente para os mais pobres. Assegurar que o Estado tenha um papel importante na promoção, proteção e assistência à saúde da população é um paradigma relevante, que, felizmente, atingimos no Brasil.
Porém, não há dúvidas de que o país tem muito o que avançar na implementação de políticas sociais e econômicas. Para que isto ocorra, entretanto, é essencial uma certa segurança jurídica, tanto na esfera da saúde pública, quanto na privada. Ocorre que, no Brasil, o fenômeno da judicialização vem minando a possibilidade de os gestores, públicos e privados, tomarem as decisões adequadas.
A judicialização na saúde ocorre quando uma pessoa busca na Justiça o acesso a um recurso que não está prontamente disponível por outros meios. Há casos em que o recurso é justificado, mas também há evidentes exemplos de abusos. Entre os mais escandalosos reportados pela imprensa, há aqueles em que pacientes obtiveram direitos como ser internado em spa, o fornecimento de protetor solar e o fornecimento de fraldas de marca.
Em um mundo ideal, todos teriam acesso a tudo isso. No mundo real, especialmente na esfera pública, os recursos são limitados e cabe aos gestores fazer as escolhas mais adequadas. Não é só uma questão de falta de recursos. Em 2013, os Estados Unidos investiram mais de seis vezes per capita em saúde do que o Brasil e, nem assim, conseguiram atender a todas as demandas da população. É fundamental eleger prioridades.
Quando o Judiciário intervém nessas decisões, entretanto, ordenando o fornecimento de um produto ou serviço de saúde — independentemente, muitas vezes, de comprovação de eficácia ou de custo/efetividade — ele assume o papel do gestor. E ao fazê-lo, desequilibra o sistema e retira recursos de programas que foram estudados e considerados mais importantes.
Nos hospitais privados, são cada vez mais numerosas as liminares, que obrigam a internação de um paciente que não encontrou vaga em hospital público, ou que tem um plano de saúde que não inclui aquele hospital específico em sua rede assistencial. É imperativo notar que, frequentemente, os riscos econômicos recaem sobre o hospital, que raramente são partes no processo, ou sequer ouvidos.
Evidentemente, o Brasil precisa investir mais em saúde. Há deficiências sérias em quantidade de recursos, processos administrativos e, especialmente, em gestão e liderança. Não é, porém, com a manutenção da ficção de que é possível oferecer tudo a todos que serão tomadas melhores escolhas e eleitas as prioridades corretas para a população.
Tempos de crise exigem uma visão aguçada da realidade — e essa visão deve ser compartilhada por médicos, gestores de saúde, políticos e juízes.
Francisco Balestrin é presidente da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp)
Fonte: O Globo – 18.04.2016