Morte de José Wilker é mote para riscofobia

Mortes repentinas como a do ator José Wilker, causada por um infarto fulminante, são mote para uma verdadeira corrida aos cardiologistas e serviços de check-up.

Quarentões, cinquentões, sessentões, setentões, todos preocupados que suas artérias estejam entupidas e que, de uma hora para outra, o coração entre em colapso e pare.

Esse pavor, essa ansiedade em relação ao risco de infartar, por exemplo, gera um impulso de fazer ou consumir alguma coisa que possa controlá-lo, um check-up por exemplo. Alguns autores chamam essa situação de riscofobia.

Desde a década de 1980, tem se proliferado a adoção de medidas preventivas como forma de minimizar futuros problemas de saúde. Se por um lado essa noção de risco tem uma função positiva de prevenção, por outro a preocupação exagerada com as ameaças à saúde pode se tornar fonte de mais inquietação e sofrimento.

Alguns autores pontuam que vivemos uma era catastrófica da saúde, em que as pessoas estão cada vez mais reféns de prescrições, exames e hábitos impostos e restritivos.

Correr ou não correr esse risco? É a pergunta que fazemos a cada vez que um periódico científico publica (e a mídia reproduz) um novo estudo de risco envolvendo alimentos, bebidas, comportamentos etc.

O epidemiologista da Fiocruz Luis David Castiel costuma dizer que o cálculo exagerado do risco, em vez de apontar caminhos para uma vida mais saudável, produz novas encruzilhadas.

O sociólogo polonês radicado na Inglaterra Zygmunt Bauman também vê um conteúdo religioso modelando os discursos de promoção à saúde. Pessoas que se expõem ao risco são rotuladas como displicentes e, portanto, merecedoras de punição (doença).

Para Bauman, as imagens religiosas que antes tinham a função simbólica de lidar com os medos relativos às ameaças à nossa integridade e segurança foram se deslocando e assumindo a forma tecnocientífica de riscos.

A questão é polêmica. Implica desafiar conhecimentos estabelecidos, presentes no discurso da maioria dos profissionais da área de saúde. Não podemos esquecer também do peso econômico da indústria da saúde. Ela vende a necessidade (de um novo remédio ou exame), os médicos prescrevem e nós, os pacientes, consumimos.

Só para ficar na cardiologia, soube recentemente que um renomado hospital praticamente abandonou a cintilografia, um exame que avalia o fluxo de sangue para o músculo do coração, identifica obstruções nas coronárias e estima a probabilidade de a pessoa sofrer um infarto.

O exame preferido agora (e muito mais caro) é a angiotomografia, que observa nitidamente a parte interna e externa, diâmetro e comprometimento dos vasos sanguíneos e mostra com clareza a presença de placas de cálcio ou de placas de gordura nas coronárias. A angiotomo detecta até mesmo as menores calcificações coronarianas, que não seriam identificadas num exame comum.

Muitos de vocês vão dizer: ótimo, eu quero! Não é bem assim. Praticamente todo mundo tem um grau de estenose, ou seja, estreitamento do vaso sanguíneo. Segundo a boa literatura médica, até 70% é normal. E mesmo se a coronária estiver 90% entupida, mas sem repercussão funcional, nem sempre é preciso intervir (sei que muitos cardiologistas discordam frontalmente disso).

Mas o que acontece nesse hospital hoje é que praticamente todo mundo nessa situação está recebendo um stent, aquela prótese que alarga uma artéria entupida, normalizando o fluxo sanguíneo. Mas stents desnecessários e seus riscos já são tema para uma outra coluna…

A questão é: como decidir sobre o que merece ou não nossa preocupação? Não existe uma receita. Trata-se de uma questão solitária, em que cada um deve buscar informações (as mais isentas possíveis) e tentar encontrar o equilíbrio.

Tanto Bauman quanto Castiel defendem que o discurso do risco nunca será suficiente para conter comportamentos difíceis de serem manejados, como o sedentarismo. Oscar Wilde já sabia disso quando profetizou: “posso resistir a tudo, menos às tentações”.

Fonte: Folha de São Paulo 08/04/2014

Cláudia Collucci é repórter especial da Folha, especializada na área da saúde. Mestre em história da ciência pela PUC-SP e pós graduanda em gestão de saúde pela FGV-SP, foi bolsista da University of Michigan (2010) e da Georgetown University (2011), onde pesquisou sobre conflitos de interesse e o impacto das novas tecnologias em saúde. É autora dos livros ‘Quero ser mãe’ e ‘Por que a gravidez não vem?” e coautora de ‘Experimentos e Experimentações’. Escreve às terças.