Setor discute como obter mais verbas em quadro de restrições

Alguns querem rever teto de gastos e mudar distribuição federativa; especialistas vêem problemas de gestão

Natália Cancian e Cláudia Collucci
BRASÍLIA E SÃO PAULO

Responsável pelo atendimento à saúde de 7 em cada 10 brasileiros, o SUS (Sistema Único de Saúde) vive um dilema entre encontrar alternativas para superar o subfinanciamento, um dos seus principais entraves, e aumentar a eficiência no uso dos recursos disponíveis.

A Organização Mundial de Saúde aponta que, em 2015, ano dos dados mais recentes, o país gastou em saúde o equivalente a 3,8% do PIB (Produto Interno Bruto) ou US$ 333 (cerca de R$ 1.288) por pessoa.

Para comparação, em países como Argentina e França, esse valor foi de US$ 713 e US$ 3.178 no mesmo ano, respectivamente.

“Se pegar o quanto aplicamos em valores per capita somando União, estados e municípios, é pouco mais do que a Namíbia”, diz Élida Graziane, procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo.

Esse descompasso também aparece na comparação dos gastos em saúde na rede pública em relação ao setor privado. Atualmente, 54% do total desses gastos ocorrem na rede privada, que atende cerca de 50 milhões de brasileiros. O restante, ou 46%, está na rede pública, que atende mais de 150 milhões.

Se as contas já estavam difíceis, a entrada em vigor de novas regras para cálculo dos recursos federais destinados à saúde têm aumentado a preocupação do setor.

Desde o início do ano, a União tem o orçamento calculado com base nas regras da emenda constitucional 95. A medida, conhecida como “teto de gastos”, prevê que o valor a ser investido pela União em saúde seja o equivalente aos gastos do ano anterior, ajustados pela inflação.

Para especialistas, porém, a mudança acaba por congelar os recursos à saúde -a estimativa é R$ 400 bilhões sejam perdidos até 2038. Um impacto que pode ser sentido já no próximo ano.

“Nossa preocupação é que a nova regra diminua o orçamento. Se o governo não conseguir liquidar o que chama de “restos a pagar”, não entra como gasto efetivado. E se restos a pagar não é liquidado, é cancelado”, diz Eli Iola Gurgel, economista especialista em saúde e professora da Faculdade de Medicina da UFMG.

Por meio de modelos matemáticos e estatísticos, um estudo publicado em maio na revista internacional PlosMedicine projetou 20 mil mortes a mais de crianças até 2030 caso as medidas de austeridade fiscal sejam mantidas.

O aumento estaria associado ao corte de verbas em programas sociais, como o Bolsa Família, que transfere renda diretamente às famílias de pobreza extrema, e o ESF (Estratégia de Saúde da Família).

Cortes nesses programas têm sido apontados como uma das razões para a alta da taxa de mortalidade infantil em 2016, após 26 anos de queda. O impacto maior seria nas chamadas mortes evitáveis, causadas por diarreias e pneumonias, que são influenciadas pela perda de renda das famílias, estagnação de programas sociais e cortes na saúde pública.

Em meio a esse impasse, a discussão sobre o financiamento da saúde deve agora chegar à Justiça.

A previsão é que o STF (Supremo Tribunal Federal) analise ainda neste semestre uma ação da Procuradoria-Geral da República que questiona as regras da chamada emenda constitucional 86, conhecida como “orçamento impositivo”.

O modelo, que determinava que fossem aplicados percentuais de 13,7% a 15% da receita corrente líquida na saúde, foi usado para definir o orçamento de 2016. Para a Procuradoria, no entanto, a medida leva à redução de recursos ao estabelecer percentuais menores do que definido em regras anteriores e por retirar recursos da exploração de petróleo como “fonte adicional” da saúde.

Embora a emenda já tenha sido substituída pelo chamado teto de gastos, especialistas dizem que uma decisão a favor da suspensão pode recuperar recursos para a saúde e abrir precedente na análise de outras ações sobre o tema.

“Se o Supremo for no sentido de que não cabe retrocesso, a tendência é ter uma linha interpretativa coerente”, diz Graziane.

Já há ao menos seis ações à espera de análise no STF que questionam impactos da emenda do teto de gastos. Uma delas, proposta pelo PDT, pede que a Corte exclua desse limite os gastos com educação e saúde.

O pedido tem sido reforçado por secretários de saúde do país, mas não encontra eco no governo federal. Em congresso com secretários de saúde no fim de julho, o ministro Gilberto Occhi defendeu que a medida não fosse suspensa, mas “aprimorada”.

“Todos querem revogar [a emenda do teto], mas acho que precisamos melhorar a emenda. Ao melhorarmos a arrecadação no país, poderemos aumentar o financiamento do SUS. Defendo o avanço e a melhoria da regra que hoje está posta”, disse.

Questionado sobre que tipo de mudança poderia ser feita, o Ministério da Saúde não respondeu. Em nota, diz que a emenda 95 “protege a saúde de ter seu piso de gastos reduzido mesmo em momentos de contração da economia e de queda de receita. Não há para a saúde um teto de gastos e sim um piso”, diz.

Já para Mauro Junqueira, do Conasems (Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde), os municípios têm tido dificuldade em arcar com o aumento de gastos. De 2002 a 2016, a participação da União nos gastos com saúde caiu de 60,6% para de 43,1%. Já a dos municípios passou de 17,3% para 27,3%.

“Precisamos ter mais fôlego para dar conta”, afirma ele, que defende mudanças no pacto federativo, com melhor distribuição das responsabilidades de União, estados e municípios, além de revisão nas regras de isenção fiscal concedida a alguns setores.

Se faltam recursos, também falta melhor gestão. Um balanço divulgado pelo CFM (Conselho Federal de Medicina) e pela ONG Contas Abertas em março deste ano aponta que cerca de R$ 174 bilhões deixaram de ser aplicados pelo Ministério da Saúde entre 2003 e 2017.

O valor representa 11% do total autorizado no período, que foi equivalente a R$ 1,6 trilhão. Quase metade dos recursos não usados deveriam ter sido destinados a obras e compra de equipamentos médicos para atender ao SUS.

“Tem que ter aumento do financiamento acompanhado de eficiência. Não adianta gastar mais sem ter métricas de qualidade”, afirma o economista Paulo Furquim de Azevedo, professor do Insper.

Além do subfinanciamento, o modelo de transferência de recursos federais à saúde também tem sido alvo de debates.

Em dezembro, uma portaria do ministério passou a flexibilizar as regras de repasse de recursos da União a estados e municípios e permite que esses possam decidir como aplicar essas verbas.

Até então, esses recursos eram “carimbados” e enviados para uso específico em determinadas áreas, sem que pudessem passar para outras. Um recurso da atenção básica, voltado para unidades de saúde, não poderia ser destinado a hospitais.

Com a mudança, cabe ao gestor definir onde a verba será aplicada, desde que preste contas disso. Os recursos passam a ser divididos em apenas duas categorias: custeio e investimento.

A medida, que passou a ser aplicada neste ano, atende a uma demanda dos municípios, para os quais o modelo anterior deixava recursos “engessados” nas contas e impedia a aplicação em programas de maior necessidade. Especialistas, no entanto, alegam que a medida gera preocupação -sobretudo em relação ao controle dos gastos.

Fonte: www.folha.com.br