Com cobertura restrita, estratégia reduz as taxas de mortalidade e internações
Damiana Leite de Alencar, 43, tem hipertensão e diabetes descompensadas há dois meses, desde a morte de seu filho, Michel, 16, causada por um tumor no cérebro. Deprimida, ela dorme pouco.
“Ele sentia muita dor, perdeu os movimentos. Sei que descansou, mas dói demais não ter ele mais aqui”, diz a mãe, durante a visita domiciliar do médico de família Stephan Sperling, o primeiro a suspeitar da gravidade do caso do garoto e encaminhá-lo ao neurologista.
Após revisar as medicações que Damiana está tomando e lhe dar um longo abraço, o médico aconselha, na despedida: “Agora, aos poucos, você precisa voltar a cuidar de você”.
A poucas quadras dali, em uma comunidade do Jardim São Jorge, na zona oeste de São Paulo, outra equipe de saúde da família, formada pela médica residente Ana Freire, 27, e a agente Suzana Gomes, lida com outros dramas.
É a menina com transtorno psiquiátrico não diagnosticado, é o homem com insuficiências renal e cardíaca e confusão mental abandonado pela mulher, é a idosa com artrose e depressão que mora com o filho de 41 anos dependente de álcool e drogas.
“O sentimento é de impotência. A gente liga para os serviços psiquiátricos e nunca tem vaga”, diz a médica Ana Freire, no caminho de volta à unidade de saúde após quatro horas de visitas domiciliares, acompanhadas pela reportagem da Folha.
A UBS (Unidade Básica de Saúde) Jardim São Jorge é uma das que já adotaram o modelo de atenção primária anunciado neste ano pela secretaria municipal.
Está previsto o fechamento das 108 AMAs (Assistências Médicas Ambulatoriais) na cidade, que serão absorvidas pelas unidades básicas e suas equipes de saúde da família.
O SUS paulistano sempre foi caracterizado pela desorganização e fragmentação dos cuidados, com baixa cobertura de saúde da família (35% da população) e diferentes modelos de atenção básica com a mesma função.
No São Jorge, até dois meses atrás, coexistiam uma UBS e uma AMA no mesmo prédio, com gestores e guichês distintos. As equipes não se conversavam, embora atendessem pacientes da mesma região.
Era comum o paciente sair de uma consulta e já passar com outro médico caso não tivesse conseguido o que queria, como atestado médico ou medicamentos controlados, por exemplo, conta a enfermeira Maria Amélia Leal, atual gestora da unidade.
Ali, agora as equipes de saúde da família são a porta de entrada. Os pacientes passam primeiro pela enfermagem, que avalia o risco. Muitos são atendidos pelos médicos no mesmo dia.
Os casos que demandam consultas com especialistas são encaminhados a outras unidades na região, onde a espera pode chegar a um ano.
Um entrave que persiste na cidade é a falta de integração e coordenação entre as unidades de atenção básica e as redes de especialistas e de hospitais. Eles deveriam reportar ao médico de família qual a conduta adotada para que o seguimento do paciente continuasse na UBS. Mas isso não acontece hoje.
O secretário da saúde, Wilson Pollara, diz que, com a reorganização da rede e a informatização dos dados, isso será possível.
A cidade de São Paulo tem hoje cerca de 40 mil profissionais da saúde atendendo a população na rede pública. Desses, 1.200 são médicos da família.
A reorganização é fundamental, segundo o secretário Pollara: “Há muito retrabalho. Vejo aqui no computador que temos 32 pacientes internados aguardando até 22 dias por um cateterismo. Metade dos que estão nas UTIs não precisariam estar ali”.
Para o médico de família Gustavo Gusso, professor de clínica médica da USP, a mudança será um desafio, mas é a única maneira de tornar o sistema de saúde paulistano mais racional e eficiente.
“Pela primeira vez, estou vendo as coisas caminharem nesse sentido”, afirma Gusso.
Nos países com sistemas únicos de saúde, como Canadá e Inglaterra, 90% da população está inscrita em equipes de atenção primária, que fazem da prevenção ao atendimento clínico e podem resolver 80% dos problemas.
No Brasil, 77% da população é acompanhada na atenção primária à saúde, sendo que a grande maioria (65%) é cadastrada na ESF (Estratégia Saúde da Família). O programa tem 43 mil equipes e atende 135 milhões de pessoas.
Em 24 anos de existência, o ESF se mostrou o modelo ideal de atenção primária à saúde, com redução da taxa de mortalidade infantil e de internações por condições passíveis de prevenção, mas está longe de atingir a cobertura universal, especialmente nos grandes centros urbanos, como São Paulo.
“Falta vontade política. Contratar equipes é um investimento caro, o gestor precisa acreditar no modelo, colocá-lo como prioridade. Disputas pelo orçamento sempre vão acontecer”, diz Thiago Trindade, presidente da sociedade de medicina de família e comunidade (SBMFC).
Segundo ele, os principais entraves para a expansão do programa são a coexistência de outros modelos de atenção primárias (como as AMAs em São Paulo) e os vínculos de trabalho precários. Cerca de 40% das equipes são remuneradas por meio de bolsas, com contratos temporários que não fixam o profissional de saúde naquela região.
Isso também contribui para o fato de a especialidade ser pouco buscada pelos médicos. Apenas um terço das vagas de residência em medicina de família são preenchidas todos os anos.
Para Trindade, o fato de alguns planos de saúde começarem a estruturar suas redes de atenção primária com base na medicina de família poderá contribuir para uma maior procura pela especialidade.
Fonte: www.folha.com.br