Doentes terminais deveriam decidir como querem morrer

“Os médicos são homens que prescrevem remédios sobre os quais eles pouco conhecem, para curar doenças sobre as quais sabem menos ainda em seres humanos sobre os quais não sabem nada”.

Voltei a lembrar desse pensamento atribuído ao filósofo francês Voltaire ao receber nesta segunda (19) o telefonema da filha de uma querida amiga, que lutava havia quase três anos contra um câncer de pulmão. “Clau, a minha mãe faleceu.”

Passado o choro, imediatamente meus pensamentos foram ocupados pelos incríveis momentos que vivemos nesses últimos 15 anos. As viagens, a dança, os memoráveis jantares, as confidências mútuas, as dicas de viagem. A alegria dela parecia inesgotável.

Nunca existiu tempo ruim, nem nesses últimos anos em que passou mais internada do que em casa e que a quimioterapia passou a fazer parte da rotina quase que diária. Tinha uma fé e um otimismo inabaláveis. Saía das sessões de químio como se estivesse saindo do cinema. Louca de vontade de devorar um X-salada na padoca da esquina.

Foi tratada pelos melhores oncologistas de São Paulo, em um dos hospitais mais renomados do país e teve acesso a medicamentos de última geração. Ainda assim, o maldito câncer levou a melhor.

A verdade é que o corpo humano é muito mais complexo do que a medicina pode prever. Lembrei-me também da conversa que tive há dois anos com o oncologista Siddartha Mukherjee, que venceu o Prêmio Pulitzer de 2011 com o livro “O Imperador de Todos os Males: Uma Biografia do Câncer” (Companhia das Letras).

Pesquisador da Universidade Columbia (EUA), ele dizia que ainda falta tecnologia para compreender e tratar com mais eficiência os tumores e que talvez a tão falada batalha contra o câncer jamais seja ganha por completo. Sim, é claro que tivemos avanço.

Hoje existem remédios que atacam as células malignas e poupam as normais. O mesmo acontece com a radioterapia, cujos feixes de radiação estão mais precisos no tumor e não nas partes sadias. As técnicas de cirurgia também melhoraram e são muito menos mutiladoras que no passado. Também avançamos no conhecimento e na cultura da prevenção, embora muitas vezes teimamos em não fazer a lição de casa.

Mas, como diz Siddartha, é um exagero dizer que a guerra contra o câncer está vencida (ou prestes a ser), como tantas vezes já se alardeou. A impressão que eu tenho é quanto mais se busca essa tão sonhada vitória, mais riscos o paciente incurável tem de sofrer, de passar por tratamentos e procedimentos inúteis, em vez de terminar os seus dias em paz, ao lado daqueles que ama. Essa lição os médicos, as famílias e a sociedade de uma forma geral ainda não aprenderam. Cuidados paliativos, cuidados paliativos, cuidados paliativos. Quantas vezes e por quanto tempo mais teremos que repetir esse conceito até que ele vire um caminho natural para uma morte digna?

No mundo dos meus sonhos, as pessoas desenganadas, com câncer por todo o corpo, voltariam para casa antes de estarem completamente debilitadas. Teriam direito a potentes analgésicos para não sentirem dor e a uma dose letal de barbitúrico. Resolveriam pendências e fariam tudo o que lhes dessem na telha. E quando sentissem o fim se aproximando, reuniriam a família e os amigos, colocariam as músicas preferidas, dançariam e desfrutariam de um bom jantar, regado do melhor vinho. Depois, iriam para o quarto, tomariam o veneno e dariam adeus à vida. Era com festa e não numa UTI que eu gostaria de ter me despedido de você, amiga querida.

Fonte: www.folha.com.br  Cláudia Collucci